Você vai abandonar o PC em 2017? E a sua empresa?

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No dia 4, a Qualcomm lançou o Snapdragon 835, o mais poderoso processador para celulares já criado. Mais que simples curiosidade tecnológica, a novidade coloca mais um prego no caixão dos PCs e deve impulsionar ainda mais o poder de smartphones. Não é de se estranhar, portanto, que tanta gente esteja literalmente trocando seus computadores por celulares! Mas e as empresas (inclusive a sua), estão preparadas para lidar com essa mudança de hábito dos consumidores? Resposta: a esmagadora maioria não!

A substituição de computadores por smartphones está tão consolidada, que até já aparece nas estatísticas do IBGE. No fim de 2016, o órgão divulgou resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios que demonstraram que, pela primeira vez na história, a quantidade de residências brasileiras com computador diminuiu de um ano para o outro. Em sentido contrário, o número de domicílios com internet cresceu 20% em dois anos.


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Até há alguns anos, essas duas conclusões seriam contraditórias. Hoje fazem todo sentido. Isso porque a imensa maioria dos computadores comprados para residências no pais destinam-se a atividades simples, como pesquisas na Internet, conversas online e produção de textos. Até bem pouco tempo atrás, um computador era a única possibilidade de se fazer isso. Hoje os celulares cumprem essas tarefas tão bem ou até melhor que os PCs e trazem duas vantagens inegáveis: não precisam ser compartilhados com outros membros da família e estão conectados e prontos para uso o tempo todo, onde quer que estejamos.

Nossa vida está de tal forma integrada aos celulares que, se esquecemos nossa carteira em casa, damos um jeito para passar o dia sem ela, mas, se esquecemos o celular, voltamos para buscá-lo. Afinal de contas, as tarefas que desempenhamos com ele estão cada vez mais diversificadas e essenciais. Tanto que a GM usou esse comportamento no comercial abaixo, ainda em abril 2014:



É uma propaganda de carro, mas a coisa mais importante parece ser o celular! Ou seja, a capacidade de se conectar ao seu smartphone se transformou em um argumento de venda do Ônix, “um carro feito para os dias de hoje”.

E como ficam os PCs diante desse avanço dos celulares?

 

Agonia lenta

Não estou dizendo que o PC vai sumir totalmente ou que isso vai acontecer de uma hora para outra. Mas até um cego vê que as vendas de computadores despencando. Segundo o IDC, no Brasil, elas caíram 35% no terceiro trimestre de 2016 em relação ao mesmo período de 2015. Nas residências, o tombo foi de 38%.

O que ainda garante uma sobrevida aos computadores? Existem muitas tarefas que ainda são difíceis de ser executadas em dispositivos móveis, como smartphones e tablets.

Os empecilhos podem ser agrupados em três grandes grupos: interface (um mouse é muito mais preciso que nosso dedo), tamanho da tela e capacidade de processamento. Mas os primeiros vêm sendo resolvidos criativamente pelos designers de interface, enquanto que, para os segundos, as telas estão ficando cada vez maiores. Quanto ao poder da máquina, lançamentos como o da Qualcomm minimizam continuamente a vantagem dos PCs, até que ela desapareça por completo

Mas, como dito acima, para a imensa maioria das pessoas, os celulares atuais já dão conta do recado. Para elas, a conectividade é a coisa mais importante que existe.

Mas então o que as empresas estão fazendo para tirar proveito disso?

 

Primeiro no celular

Quando eu trabalhava no Estadão, lá pelos idos de 2010, começou a ficar popular o conceito de “digital first”, especialmente entre os veículos de comunicação (talvez para tentar compensar o seu imperdoável atraso nisso). Ele preconizava que as empresas, ao pensar em seu negócio, deveriam considerar, desde o primeiro momento, que ele deveria funcionar bem nos meios digitais. Na verdade, se fosse para escolher entre o online e o off line, o primeiro deveria ser privilegiado.

De lá para cá, o “digital first” foi substituído pelo “mobile first”. Ou seja, não basta funcionar bem nos meios digitais: tem que funcionar bem nos celulares. E aí a coisa fica feia.

As empresas já sabem, por exemplo, que precisam ter um bom site. Mas a maioria continua pensando nos computadores quando produzem seus sites. Então possuem uma ótima presença online na Web, mas apenas quando o site é visto em PCs. Se for aberto em um celular, muitas vezes fica inutilizável.

Um erro clássico é insistir em tecnologias ultrapassadas, como, por exemplo, o Flash. É verdade que ele foi fundamental para tornar a Web muito mais bonita e interativa há uns 20 anos, mas se tornou pesado e inseguro, acabando sendo banido dos celulares. Além do mais, hoje é possível fazer a mesma coisa com HTML 5, mais estável e leve. Então por que insistir no Flash?

O negócio é tão sério, que o Google penaliza sites que não aparecem bem em celulares, jogando-os para baixo nos resultados de seu buscador. Outro bom exemplo é The New York Times, que bloqueia o próprio site nos computadores da empresa. O objetivo: forçar os funcionários a usar os produtos nos celulares, para terem a mesma experiência que a maioria dos clientes.

Mas há ainda um outro tipo de erro comum na presença das companhias nos celulares.

 

Use bem a plataforma

Smartphones e tablets são equipamentos incríveis, que permitem aos desenvolvedores criar soluções inovadoras e muito úteis aos usuários, graças a uma enorme quantidade de sensores (como geolocalização), ao fato de se integrar com muitas bases de dados do proprietário (como informações do Facebook e do Google) e por estar continuamente online. Então por que muitas empresas insistem em oferecer aplicativos que se limitam a transpor para a telinha o que eles oferecem na Web?

Fazer isso é muito desperdício de potencial tecnológico! É como ter uma Ferrari e usá-la apenas para ir à padaria da esquina!

Aplicativos de e-commerce são um mau exemplo disso. A maioria não oferece nada além do que está em seu site. Francamente, para que desenvolver um app então?

Mas peguemos o exemplo da Amazon. Seu aplicativo tem um recurso bastante interessante:  quer comprar um produto que você está vendo na sua frente ou em uma imagem? Basta fotografá-lo com o aplicativo! Afinal, todos os celulares têm uma câmera. Em segundos ele o reconhecerá o item e dará o link direto para comprá-lo. Há ainda o caso da Amazon Go, as novas lojas físicas da empresa, em que o consumidor pega os produtos que quer e sai sem precisar passar pelo caixa, discutido aqui recentemente. Nelas, o celular tem um papel essencial na identificação do usuário.

Algumas empresas já aprenderam a se aproveitar da geolocalização –a capacidade do smartphone de saber onde o usuário está em tempo real. Dessa forma, sempre que o cliente se aproximar de uma loja física do varejista –ou de um concorrente– o celular pode jogar na tela uma oferta convincente, com base no perfil de compras do indivíduo.

Esses são apenas alguns exemplos mais óbvios de como qualquer negócio pode tirar muita vantagem dos celulares, mas poderíamos ficar aqui horas debatendo possibilidades para cada caso. Na maioria delas, nem é preciso um grande investimento. Cada vez mais, o único limite fica sendo a criatividade do dono do negócio e do desenvolvedor.

Portanto, pergunte a você mesmo e responda com sinceridade: o seu negócio já abraçou para valer os smartphones? Pois você e seus clientes já fizeram isso! Não dá para descolar uma coisa da outra.


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O que acontecerá quando o supermercado lhe entregar a compra que você NÃO fez?

Homeplus, sistema da Tesco na Coreia do Sul, que permite que os consumidores façam compras na plataforma do metrô com seus celulares, apenas fotografando as imagens dos produtos, que são depois enviados a suas casas – imagem: divulgação

Homeplus, sistema da Tesco na Coreia do Sul, que permite que os consumidores façam compras na plataforma do metrô com seus celulares, apenas fotografando as imagens dos produtos, que são depois enviados a suas casas

Há alguns dias, a Amazon fez outro daqueles anúncios com potencial de chacoalhar o varejo: a Amazon Go, uma loja em que o consumidor simplesmente pega os produtos que quiser e sai, sem precisar passar por um caixa. Mas apesar de ser algo incrivelmente inovador, está longe de ser a única tecnologia que impactará profundamente a nossa maneira de fazer compras em um futuro próximo. E isso dá espaço a uma série de questionamentos éticos pela forma como afeta algo tão essencial a todos nós.

Para quem não sabe do que se trata, Amazon Go é o nome de uma cadeia de lojas físicas da gigante do e-commerce, cuja principal característica é a inexistência de caixas: o consumidor pega o que quer e vai embora. Ele é identificado por um aplicativo em seu smartphone e uma grande combinação de sensores da loja verifica o que o consumidor pega e quanto pega. Caso desista da compra, é só devolver o item à gôndola. Quando terminar, basta sair da loja e todos os produtos serão automaticamente cobrados no seu cartão de crédito.

O vídeo oficial abaixo demonstra bem o conceito:



A Amazon pretende abrir 2.000 lojas como essa. A primeira está prevista para o início de 2017 em Seattle (EUA), onde fica sua sede.

Para alguém que adora tecnologia, como eu, a Amazon Go é de encher os olhos. A princípio, o que se vê é uma incrível simplificação do ato de fazer compras, e uma grande agilidade no processo. Mas a iniciativa traz muito mais que isso, inclusive potenciais riscos de invasão de privacidade.

Foi-se o tempo que varejo era movido pela intuição do gerente da loja e pela lábia do vendedor. Há anos, já se guia por uma ciência própria, que embute cada vez mais tecnologia. Inúmeras variáveis são consideradas para escolher quais produtos oferecer em uma loja e como fazer isso, como o perfil do negócio, local onde está a loja, faixa etária, classe social e nível educacional de seus compradores, época do ano, entre tantos outros.

É por isso que não existem, por exemplo, duas Lojas Americanas iguais no mundo, apesar de todas pertencerem a uma mesma empresa. Os produtos oferecidos e sua distribuição podem variar dramaticamente de uma loja para outra, seguindo critérios como os indicados acima.

O objetivo de tudo isso: maximizar a receita e os lucros. E isso só é possível conhecendo muito bem seus clientes.

E aí a Amazon Go começa a mostrar a que veio.

 

Quer pagar quanto?

Não é de hoje que a Amazon é um incrível case sobre como obter informações de todo tipo de seus consumidores e as combinar de maneiras inteligentes, para criar ofertas muito mais atraentes. As pessoas acabam comprando lá, mesmo quando o preço não é o mais baixo. Tudo porque as ofertas são as mais assertivas, mais adequadas a cada cliente individualmente.  E isso graças à tecnologia.

Então chega a Amazon Go.

Para que funcione, ela precisa obrigatoriamente rastrear em detalhes tudo que o consumidor faz enquanto estiver dentro da loja. Isso não apenas evita furtos, como também garante que produtos selecionados sejam cobrados e que, por outro lado, o consumidor não pague por algo que não levou.

Só que, ao mesmo tempo, a Amazon coleta informações valiosíssimas sobre os hábitos de consumo dos usuários: o que compram frequentemente, o que compram eventualmente, qual a sequência de compras, o que é adquirido sem pestanejar e o que só acontece depois de alguma reflexão ou relutância, combinação de produtos adquiridos, frequência com que cada item é comprado, entre muitas outras coisas.

Para uma empresa que é conhecida como “a loja que vende de tudo” (apesar de que isso obviamente não será verdade nas lojas da Amazon Go), essa informação é valiosíssima, não apenas para organizar a oferta de produtos e de preços em cada ponto de venda e o estoque nos depósitos, como também para criar uma experiência de compra mais eficiente para cada consumidor.

Costuma-se dizer que existe uma Amazon para cada cliente, e isso não é um exagero. Transpondo isso para as lojas físicas desse projeto, o consumidor poderia ser avisado que está chegando a hora de reabastecer alguns itens de sua despensa. Mais que isso: supondo que as etiquetas de preço na loja fossem compostas por pequenas telas de cristal líquido, seria possível alterar dinamicamente o preço de acordo com o consumidor que estivesse olhando para cada produto.

Como? Se se tratar de um item que o consumidor sempre compra, exibe-se o preço “cheio”; se for algo que exige dele um pouco mais de reflexão, pode-se oferecer um desconto, “para fechar negócio”. Isso já acontece no e-commerce, mas agora pode começar a acontecer também no varejo físico.

Não será mais conversa fiada de vendedor quando ele disser que “esse preço é só para você!”

 

Conhecendo o consumidor como ninguém

No final das contas, a turma de Jeff Bezos faz tudo para não perder um negócio, abusando de toda a tecnologia disponível para isso. A entrega em até 30 minutos por drones, que já vem sendo anunciada há anos, literalmente decolou no início deste mês, com os primeiros testes de entregas reais na Inglaterra, como pode ser visto abaixo:



Como já foi dito antes, nem sempre o preço será o mais baixo, mas receber um produto tão rapidamente –às vezes mais que a ida a uma loja no bairro– é um atrativo inegável. E as empresas de comércio eletrônico sabem que o prazo de entrega pode ser o fator de desempate para o consumidor comprar de uma loja e não de um concorrente, que oferece o mesmo produto pelo mesmo preço.

Nesse sentido, tão ou mais ousado que a entrega por drones é o conceito de “remessa antecipada”, patenteada pela mesma Amazon no final de 2013. Funciona da seguinte maneira: os servidores da empresa tentam “adivinhar” compras de seus consumidores antes que elas tenham sido sequer feitas –e sem qualquer garantia que elas sejam efetivadas. De posse dessa informação, eles verificam se o produto está disponível no centro de distribuição da companhia mais próximo da residência do comprador em potencial. Caso não esteja, ele é enviado para lá antes que o pedido seja concretizado. O objetivo: ganhar alguns dias no prazo de entrega para cada caso e, dessa forma, vencer a concorrência nesse quesito.

Parece exagerado? Jeff Bezos acha que não. Se a informação para até mesmo antecipar o que o consumidor deseja existe, e a tecnologia para extraí-la está disponível, por que não aproveitar isso para fechar vendas?

Um outro exemplo tecnológico no melhor estilo “de grão em grão a galinha enche o papo” é o da Kiva Systems, uma empresa americana que cria robôs e sistemas de organização inteligente de grandes centros de distribuição.

No modelo tradicional desses depósitos, metade do tempo dos funcionários se consome com o pessoal literalmente andando até as prateleiras para buscar os itens que serão entregues. A Kiva criou um sistema inovador que, ao invés disso, robôs trazem as prateleiras inteiras com os produtos até os funcionários responsáveis pelo despacho, economizando muito tempo.

Mas o mais surpreendente é a devolução das prateleiras: o sistema está constantemente reorganizado o lugar delas no depósito com base no volume de pedidos de cada item individualmente. Como exemplo, se o Dia dos Namorados está chegando, as prateleiras de produtos de grande saída nessa data vão sendo, aos poucos, reposicionadas pelos robôs perto das esteiras de despacho. Tudo para ganhar preciosos minutos. Passado esse dia, tais produtos voltam a ser colocados mais para o fundo do centro de distribuição, abrindo o “espaço nobre” para outros itens, com mais demanda no novo período.

O vídeo abaixo ilustra bem isso:



O sistema traz benefícios tão claros que, em 2012 a empresa foi comprada por US$ 775 milhões. Adivinham o comparador? Uma dica: seu nome começa com “A” e termina com “mazon”. E a Kiva foi rebatizada de Amazon Robotics.

 

Case brasileiro na Copa do Mundo

No Brasil, também temos exemplos muito criativos –e ousados– do uso de tecnologia para vendas. E a Netshoes puxa essa fila.

Na Copa do Mundo no Brasil, a empresa ganhou destaque na imprensa e nas redes sociais com uma inusitada campanha. Pouco antes da competição, um grupo muito bem selecionado de clientes recebeu uma caixa especial da empresa contendo uma camisa oficial da Seleção Brasileira do tamanho de cada um desses clientes e com seu nome estampado atrás, além de uma Brazuca, a bola oficial daquela Copa.

Um detalhe interessante: nenhum dos clientes tinha pedido aquilo, e não era um presente. Junto com os produtos, foram instruções para pagar pelo pacote, uma conta que se aproximava de R$ 500. Caso o cliente não o quisesse, a empresa buscava a caixa, sem nenhum custo para o consumidor.

Qualquer um diria que se tratava de uma operação extremamente arriscada pela alta chance de rejeição e os custos associados. Advogados arrancariam os cabelos, pois, pelo Código de Defesa do Consumidor, o envio de produtos não solicitados configura uma amostra grátis.

Mas a campanha foi incrivelmente bem-sucedida! Uma porcentagem bastante alta dos consumidores não apenas topou pagar por aquilo, como ainda ficou extremamente feliz com o fato de “a Netshoes ter se lembrado deles”. Muitos chegaram até mesmo a viralizar a campanha, gravando vídeos e postando nas redes sociais. Apenas uma pessoa ficou muita brava com aquilo: acabou ficando com os produtos de graça, “em nome do bom relacionamento com a marca”.

Assim como nos casos acima da Amazon, o sucesso da Netshoes só aconteceu por um uso criativo e criterioso de tecnologia e de informações coletadas dos clientes: eles sabiam exatamente para quem estavam enviando sua caixa, e que existia uma grande chance de eles aceitarem a oferta.

 

Questões éticas

Vendo tudo isso, o futuro parece brilhante para consumidores e varejistas. E quero acreditar que, no final das contas, os resultados serão mesmo positivos. Mas há algumas coisas a serem considerados.

Se o varejo sabe tanto sobre nós a ponto de nos enviar produtos não solicitados (e as pessoas acharem isso o máximo), quanto falta para que as nossas compras sejam feitas automaticamente? E, por isso, eu quero dizer que não tenhamos mais que nos preocupar com isso: os próprios varejistas identificarão nossas necessidades, selecionarão os produtos, enviarão a encomenda a nossas casas e debitarão tudo em nosso cartão de crédito. Sem nenhuma intervenção nossa.

Certamente essa é uma comodidade e tanto! Mas o que impediria o varejista de, por exemplo, começar a oferecer não exatamente o que seria mais interessante ao consumidor, e sim o que fosse mais conveniente para ele? Só para ficar em exemplos simples, seleção de marcas que estejam com estoque muito alto ou que lhe paguem pela “seleção preferencial”.

Honestamente entendo que isso acontecerá inevitavelmente: é apenas uma questão de tempo. Mas, quando isso acontecer, seremos capazes de perceber essa eventual manipulação? Já que estamos caminhando para isso –e tudo isso pode nos trazer muitos benefícios reais– precisamos estar atentos.

Afinal, todo tipo de informação nossa, inclusive de consumo, já está “voando” por aí. E pensar que ainda tem gente que não quer informar o CPF para emitir a nota fiscal, com medo de que o governo descubra o que ele está comprando…

“Sabe de nada, inocente!”


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Existe uma ética verdadeira nas redes sociais?

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Quais os direitos e deveres que uma empresa tem sobre as informações que seus clientes lhe confiam? Em tempos em que as redes sociais ocupam um papel central em nossas vidas, essa pergunta é fundamental e serve como base para outras, como até que ponto ela pode se recusar a ajudar a Justiça, alegando proteção à privacidade dos seus usuários? Mais que isso: um sistema pode manipular as pessoas?

As empresas podem dizer que tudo está descrito nos seus “termos de uso”, documentos com os quais todos nós concordamos ao começar a usá-las. Mas sejamos sinceros: ninguém lê aquilo! E, caso leia, nem sempre fica claro o que está escrito ali. Por exemplo, você sabia que, de acordo com os termos do Facebook, ele tem direito a usar qualquer coisa que publiquemos na sua rede (incluindo fotos e vídeos), sem nos pagar nada?


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Há alguns dias, o WhatsApp anunciou que toda a comunicação entre seus usuários passou a ser criptografada de ponta a ponta. Em tese, isso significa que ninguém, além dos próprios interlocutores, podem entender o que está sendo dito, mesmo que a informação seja interceptada.

A empresa afirma que, com isso, nem ela mesma é capaz de decodificar essa informação. É um álibi técnico muito interessante contra as constantes determinações judiciais para informar às autoridades o conteúdo de conversas entre usuários que estão sendo investigados. O Facebook, dono do WhatsApp, tradicionalmente se recusa a cooperar, alegando respeito à privacidade dos usuários. E isso regularmente evolui para batalhas jurídicas, como a que tirou o WhatsApp do ar no Brasil por 12 horas, em dezembro passado.

O cuidado com a privacidade e a integridade dos dados de usuários é mais que bem-vinda: é fundamental! Então, se as empresas estão cumprindo a promessa de não os compartilhar com ninguém, nem mesmo com o governo, isso deve ser comemorado!

Entretanto, sem entrar no mérito de que podemos supor que nem todas fazem isso, é razoável perguntar: o que as próprias empresas fazem com tanta informação pessoal, inclusive muitas intimidades, que lhes entregamos graciosamente?

 

Apaixonando-se pelo sistema

Psicólogos diriam que qualquer relação em que apenas um dos lados sabe muito do outro é desequilibrada, e potencialmente condenada por isso. Mas é exatamente assim que nos relacionamos com as redes sociais, que provavelmente nos conhecem melhor que nossas próprias mães.

Isso foi brilhantemente ilustrado no filme “Ela” (“Her”, 2013), de Spike Jonze. Para quem não viu o filme (que recomendo fortemente), ele conta a história, que se passa em um futuro próximo, do romance entre o protagonista Theodore (Joaquin Phoenix) e Samantha (voz de Scarlett Johansson).

Acontece que Samantha não é uma pessoa: é o sistema operacional que controla o computador e o smartphone de Theodore, tendo acesso a todo tipo de informação dele. O humano se apaixona pelo sistema de inteligência artificial, e é correspondido por ela! Alguns podem achar isso impossível ou até mesmo uma perversão. Mas, ao assistir ao filme, é muito difícil não se apaixonar também! E não pense que Samantha faz tudo que Theodore queira: ela também diz não e demonstra sentimentos como insegurança, ciúmes e raiva. Mas tudo isso é feito de acordo com o que Theodore espera de uma mulher.

Pobre Theodore! Samantha sabe tudo sobre ele, e ele não sabe nada sobre ela.

 

Não é pessoal, são apenas negócios

De volta ao mundo real, várias empresas são candidatas a nossas “Samanthas”. Facebook e Google são, de longe, as que mais sabem sobre nós, mas Apple e Amazon não fazem feio nesse pelotão de elite. E há uma infinidade de outras empresas que também são capazes de traçar nossos perfis psicológicos e de consumo a partir de nossas pegadas digitais, que, cada vez mais abundantemente, deixamos por aí.

Essas empresas certamente podem nos influenciar para, por exemplo, comprar um produto, em uma nova e eficientíssima forma de marketing. E são capazes até de manipular algumas emoções nossas. Não como Samantha! Mas o Facebook já fez algo nessa linha.

Em 2012, Adam Kramer, pesquisador da empresa, demonstrou ser possível “transferir estados emocionais” a pessoas simplesmente manipulando o que elas veem online. Por análise semântica, os feeds de notícias de 689.003 usuários foram manipulados pelo sistema por uma semana. Metade deles ficou sem receber posts negativos; a outra metade não viu nada positivo. Ao final, o cientista concluiu que pessoas expostas a posts positivos tendiam a fazer posts mais positivos, enquanto as expostas a posts negativos tendiam a fazer posts mais negativos! Ou seja, Kramer atuou decisivamente no humor de quase 700 mil pessoas, apenas manipulando o que viam no Facebook! O estudo foi publicado na prestigiosa “Proceedings of the National Academy of Sciences of USA”.

Mas as empresas não querem que nos apaixonemos por elas: querem apenas que compremos os produtos e serviços que elas promovem.

Como diz o ditado, “não existe almoço grátis”. Todas essas empresas nos oferecem uma infinidade de produtos incríveis aparentemente sem nenhum custo. Mas não se engane, se você não está pagando, você não é o cliente: você é o produto!

Somos influenciados, conduzidos, e sabemos disso. Mas continuamos cedendo nossa informação e usando os produtos, pois não dá mais para imaginar a vida sem eles. Ou alguém deixará de usar o seu smartphone, a mais perfeita máquina de coleta de dados pessoais, que carregamos conosco o tempo todo?

Tais empresas estão erradas em fazer isso? Provavelmente não. Elas realmente nos oferecem produtos e serviços incríveis (e um outro tanto de quinquilharias) sem que tenhamos que explicitamente pagar por eles. Mas isso tem um custo. Pagamos contando-lhes o que somos.

Se existe realmente uma ética, tudo tem limite. E é esse limite que diz se o que elas fazem é certo ou errado. Não há problema em fazer uma publicidade muito assertiva. O que não é aceitável é a manipulação das pessoas.

Então, da próxima vez que estiver usando seu smartphone ou a sua rede social preferida, tente manter o controle da sua experiência e não acredite piamente em tudo que vir. Será que você consegue?


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Depois de mudar o jeito de ver TV, Netflix agora mira o cinema e até o jornalismo

Cena de "Beasts of No Nation", primeiro filme da Netflix para o cinema - Foto: divulgação

Cena de “Beasts of No Nation”, primeiro filme da Netflix para o cinema

Na última sexta, a Netflix estreou “Beasts of No Nation”, seu primeiro longa-metragem para cinema. Dois dias antes, seu CEO, Reed Hastings, e seu diretor de conteúdo, Ted Sarandos, anunciaram a intenção de investir em jornalismo nos próximos anos. Se fosse outra empresa, essas poderiam ser apenas duas decisões isoladas, mas, nesse caso, elas podem representar o início de mudanças maiúsculas no mundo cinematográfico e do noticiário.

O Netflix é uma das empresas mais inovadoras do momento, não apenas pela sua eficiência e pela simplicidade de seu produto, mas porque, graças a elas, conseguiu modificar a maneira como as pessoas veem televisão. Ela não inventou o conceito de vídeo sob demanda, mas o popularizou em uma interface simples e presente em todo tipo de plataforma tecnológica, a um preço justo.

Porém a verdadeira mudança deriva disso tudo: dar ao consumidor a capacidade de escolher o que assistir, na hora que quiser e com o dispositivo que preferir. E esse poder fica ainda mais evidente nas séries, cujos capítulos de uma temporada são oferecidos todos de uma só vez, e não mais um por semana. Dessa forma, se o consumidor quiser, pode assistir a todos na sequência. Pode parecer uma bobagem, mas essa possibilidade coloca em xeque o conceito de grade de programação, algo sobre o qual se monta os modelos de negócios das emissoras de TV abertas e por assinatura

Beasts of No Nation” (sem título em português) estreou em apenas 31 salas independentes nos EUA (nenhuma no Brasil). Isso é insignificante em um país com cerca de 40 mil salas de cinema. Não se trata de um filme ruim: pelo contrário, “Beasts” traz um retrato cru e contundente do flagelo das crianças-soldado na África, elaborado meticulosamente para tentar abocanhar prêmios importantes, inclusive algum Oscar.

Mas então por que tão poucos endereços estão exibindo a produção original da Netflix?

 

Boicote contra a inovação

Acontece que a empresa decidiu lançar o filme em sua plataforma no mesmo dia em que saía no cinema. Normalmente são exigidos pelo menos 90 dias de embargo após a estreia nas salas para que um filme chegue a qualquer outra plataforma ou mídia, temendo a canibalização das bilheterias. A Netflix acha que isso pode ser mudado. Os grandes conglomerados de exibição, como Cinemark e UCI, acham que não. Por isso, boicotaram “Beasts” em massa.

A inovação nem sempre é compreendida. Mas a indústria do cinema deveria, pois já foi ameaçada por inovações antes. A turma na faixa dos 40 anos deve se lembrar do frenesi causado pelo lançamento do VHS. Na época, dizia-se que as fitas acabariam com as salas de cinema. Em um primeiro momento, isso parecia ser verdade, pois muita gente começou a deixar de ir ao cinema para alugar filmes. Mas a culpa não era do VHS, que oferecia uma imagem ruim, exibida em uma TV de tubo pequena em nossas casas. A culpa era do próprio cinema: as salas eram quase sempre reduzidas, abafadas, cheirando a mofo, com projeção e som ruins, poltronas desconfortáveis e uma pipoca horrorosa. Diante dessa oferta, migrar para o VHS parecia uma alternativa vantajosa.

Foi quando as exibidoras deixaram o chororô de lado e investiram na criação de salas incríveis, que proporcionassem uma experiência realmente marcante. Algo que o VHS e seus sucessores DVD e blu-ray jamais poderiam imitar. Assim, cada um encontrou o seu lugar no mercado, e as salas de exibição estão cheias como nunca.

Mas agora podem argumentar que a Netflix está querendo acabar com o embargo, que sempre existiu. Isso é uma visão míope e protecionista, de alguém que quer matar no peito um tsunami que se aproxima.

Sempre se deve dar ao consumidor a escolha. E isso significa, nesse caso, a Netflix oferecer logo os filmes e as salas de cinema continuarem a oferecer uma experiência diferenciada. Uso pesadamente o serviço online, mas também estou sempre no cinema, que adoro. Aliás, adoraria ver “Beasts” na telona, se possível em uma sala IMAX.

Mas quero ter a opção em minhas mãos.

 

Um novo jornalismo

Agora a empresa vem com essa história de produzir conteúdo jornalístico próprio. Quem vai gritar contra?

Ao contrário do cinema, as grandes empresas de jornalismo estão quase todas moribundas. Chegaram a essa situação por culpa exclusiva delas mesmas, que resistiram (e ainda resistem) a mudar seu produto, seu modelo de negócios e o relacionamento com seu público, mesmo com as pessoas migrando para alternativas mais modernas e vantajosas.

Nesse caso, não vejo o Netflix enfrentando resistência, pois os veículos tradicionais não têm fôlego para isso. Contemplarão mais uma nova empresa fazendo bem a função em que antes eram mestres, pelo simples fato de realizar um trabalho sério e adequado a realidade vigente. E, novamente, dando ao consumidor o poder da escolha.

Jeff Bezos, criador e dono da Amazon, comprou The Washington Post há dois anos, e está salvando o jornalão com sua visão pragmática de negócios e com amplos investimentos em tecnologia e jornalismo. O futuro da notícia parece cada vez mais vinculado aos gigantes da tecnologia digital.

Se a Netflix ganhará o Oscar, só o tempo dirá. A premiação nunca foi exclusivamente por critérios artísticos, e os interesses dos exibidores certamente pesam entre os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. A empresa precisará convencer os decanos de Hollywood que não está destruindo o cinema. Ou então trilhar o caminho contrário: cativar irremediavelmente o público com sua nova proposta e esperar que a pressão popular faça o resto.

Jeff Bezos mostra o caminho ao Washington Post (e à “mídia tradicional”)

Fachada da sede do Washington Post, na capital dos EUA

Fachada da sede do Washington Post, na capital dos EUA

“Insanidade é continuar fazendo sempre a mesma coisa e esperar resultados diferentes.” A frase (incorretamente) atribuída a Albert Einstein ajuda a explicar os frutos que o Washington Post vem colhendo sob a batuta de Jeff Bezos, dono da Amazon.

Quando anunciou a compra do jornalão em agosto de 2013 (concluída em outubro), o executivo disse que não se intrometeria na linha editorial, promessa que aparentemente cumpriu. Mas isso não quer dizer que ele não faria mudanças no Post: afinal, havia colocado US$ 250 milhões do próprio bolso em um negócio que estava naufragando pela incompetência de seus antigos gestores. E Bezos não é do tipo que joga dinheiro fora.

Uma das mudanças aconteceu justamente na redação. Ao contrário do que se vê em quase todos os jornais, o Post começou a contratar mais jornalistas –e bons jornalistas. Bezos não colocou o dedo no editorial, mas sabe que um conteúdo de qualidade é condição necessária (mas não suficiente) para o sucesso de um produto dessa indústria.

Em compensação, o criador da Amazon parece ter colocado todos os dedos em outras áreas do jornal, transformando um negócio moribundo em uma empresa revigorada. A primeira e mais importante das mudanças é uma marca da Amazon: “preste mais atenção em seus consumidores que em seus concorrentes”. Isso pode parecer óbvio para quem tem a cultura digital no sangue, mas os veículos tradicionais ainda se preocupam demais com os outros veículos. Esquecem-se que os verdadeiros concorrentes hoje nem sempre são eles; E pouco ou nada sabem de seu público. Quem são eles? O que gostam em seu produto? Como o consomem? Onde está o valor dele para cada pessoa (e cada um tem a sua preferência)?

Dessa forma, sob a orientação de Bezos, a equipe de tecnologia começou a alimentar a redação com uma infinidade de dados sobre seus leitores para a tomada de decisões outra característica da Amazon. Não se trata apenas de ajustar a pauta das edições, mas também como esse conteúdo será entregue para cada um de seus usuários.

Ubiquidade

Nesse ponto, vemos uma outra mudança interessante no Post: hoje é possível encontrar o seu conteúdo em uma grande variedade de devices e ambientes. A ideia é que o público tenha a sensação de que ele está em todos os lugares. Além de seu site e seus aplicativos, o Post hoje é distribuído por agregadores, como o Flipboard, e por portais, como a MSN. E –claro– o Post tem ótimo destaque nos devices Kindle, da própria Amazon. Versões digitais a um precinho camarada ou simplesmente de graça, de acordo com o caso.

O melhor conhecimento e entendimento de seu público também permitiu à equipe editorial refinar a promoção dos conteúdos, a exemplo de players nativamente digitais, como BuzzFeed, Vox e Vice. E pode apostar que ele também estará disponível nos Artigos Instantâneos do Facebook e no Apple News, quando esses estiverem amplamente disponíveis.

Os mais puritanos podem torcer o nariz para isso, dizendo que o jornal se rendeu “chamadas caça-cliques”. Isso é puro preconceito com novos formatos! Afinal, o que diferencia um post capaz de gerar engajamento de uma boa chamada na primeira página de um jornal exposto em uma banca? Os dois têm o mesmo objetivo: captar a atenção do leitor e convencê-lo a ler o conteúdo. Mas o formato das chamadas tradicionais tem pouco apelo nos meios digitais, especialmente nas redes sociais. Logo, não se trata de “caça-cliques”, e sim de adaptar a linguagem ao formato esperado nessa mídia.

Bezos quer que as pessoas leiam o Post, de um jeito ou de outro. Uma jogada comercial interessante foi a criação de uma rede de mais de 300 jornais regionais que dão acesso gratuito ao conteúdo digital do Post a seus assinantes. Não há troca de dinheiro entre o Post e os outros títulos, mas essa é uma combinação que aumenta o valor percebido das assinaturas desses títulos e injeta muita gente nova nas propriedades digitais do Washington Post. Fazendo uma “conta de padaria”, se apenas 5% dos mais de 10 milhões de assinantes desses jornais visitarem o Post, isso significa mais de 500 mil novos usuários.

Para receber toda essa gente, além dos usuários tradicionais do Post, muito investimento em tecnologia vem sendo feito. Não apenas em infraestrutura, mas também na construção de seus produtos para atender todos os formatos descritos anteriormente. Até o carregamento das páginas ficaram incrivelmente mais rápidas, se comparado ao da era pré-Bezos. Tudo para melhorar a experiência do público.

“Construa e eles virão”

O Washington Post não divulga informações financeiras, mas a sua audiência vem crescendo rápida e continuamente, como pode ser visto no gráfico abaixo, com dados da Comscore:

NYTxWP unique visitors

Além de praticamente dobrar a quantidade de pessoas que visitam seu site desde que Bezos assumiu a companhia, o Washington Post colou no antigo rival New York Times nessa métrica. Se as tendências de crescimento de ambos se mantiverem, o Post pode passar o Times no ano que vem.

Nesse cenário, vale destacar dois pontos importantes. O primeiro é que o Times acabou de comemorar a marca de um milhão de assinantes de sua versão digital, um feito memorável. O outro, favorável ao Post, é que seus usuários usam mais o celular para consumir seu conteúdo que os do Times. E isso é excelente, pois as pessoas usam cada vez menos desktops e notebooks, e cada vez mais smartphones e tablets.

Muitos podem questionar que audiência por si só não significa receita, ou pelo menos não o suficiente para manter a operação. Esse, aliás, é o dilema da maioria dos veículos de comunicação tradicionais, cujas receitas digitais crescem, mas estão longe de ser suficientes para compensar a queda dramática nas receitas “tradicionais”.

Mas Bezos é um empresário que sabe valorizar a visão de longo prazo. Sabe investir sem a ânsia de obter resultados rapidamente, para fortalecer suas empresas e viabilizar suas estratégias. Foi assim que construiu a Amazon. E pode estar fazendo o mesmo com o Post.

Ele sabe que a única maneira de atrair o público é oferecendo algo que eles queiram, da maneira que gostem, até que faça sentido o pagamento. E assume o risco que nem sempre acertará. Mas, como costuma dizer, “se você dobra seus experimentos, você duplica sua inventividade”.

A única coisa inaceitável é manter tudo do mesmo jeito e esperar um resultado diferente. Exatamente o erro que a mídia tradicional insiste em cometer. Aposto mais no modelo Amazoniano.

O que os livros impressos da Amazon representam

Caixa padrão da Amazon - Foto: divulgação

Na última quinta-feira (21), a Amazon começou a vendar livros impressos em sua operação brasileira, antes restrita a livros digitais, aplicativos e seus e-readers Kindle. Isso detonou uma gritaria acusando a gigante do varejo de práticas draconianas contra editoras e de descontos agressivos, o que liquidaria os pequenos livreiros. Mas ninguém está falando daquilo que a entrada da empresa no varejo de produtos físicos realmente representa: a desconstrução dos modelos de negócios das editoras e das livrarias.

A Amazon de fato pratica preços baixos, mas eles não são necessariamente os mais baixos do mercado. Peguemos, como exemplo, o livro de não-ficção mais vendido no Brasil de 11/8 a 17/8, segundo o Publishnews: “Destrua Esse Diário”, de Keri Smith. No momento em que esse texto está sendo escrito, a Amazon o vende a R$ 16,20, mais caro (segundo pesquisa no Buscapé) que Ponto Frio.com (o mais barato, a R$ 14,85), Saraiva.com e Livraria da Folha, e empatado com a Fnac.com.

A empresa também é reconhecida por um atendimento e respeito ao consumidor excepcionais, indo muito além do que a lei exige. Um bom exemplo é o prazo de devolução do produto: 30 dias, quando o Código de Defesa do Consumidor prevê apenas 7 (para os quais a maioria dos varejistas torce o nariz e “esconde” essa informação). Traz também soluções comerciais e técnicas muito interessantes, como entregas rápidas e o serviço “Leia enquanto enviamos”, que permite a leitura da versão digital do livro comprado enquanto ele não chega. Sem falar no uso do “big data”, para criar ofertas realmente diferenciadas para cada consumidor.

É difícil ir contra qualquer uma das coisas ditas acima: em tese, elas obrigarão o mercado como um todo a elevar a qualidade de seu atendimento. Então qual é o “problema”?

A Amazon realmente causa estragos tornando modelos de negócios obsoletos. Ela impõe ao varejo e ao mercado editorial mudanças que outras indústrias já enfrentam (não raro sem sucesso), como a fonográfica.

No caso do varejo, os preços baixos são o menor dos problemas dos concorrentes. Qualquer e-commerce é uma operação de varejo, que entrega produtos físicos (muitas vezes grandes e pesados, em lugares distantes). Não basta, portanto, ter um site bacaninha e vender a preços mais baixos que as lojas físicas. Práticas comerciais e logística deficientes, aliadas à queima de preços, geram operações altamente deficitárias, e temos gente muito grande no e-commerce brasileiro tomando prejuízo por isso.

A turma de Jeff Bezos não costuma cometer esses erros. No caso do varejo de livros, outros e-commerces e livrarias do tipo “megastores” são os grandes prejudicados, pois seu diferencial de mix de produtos e preços baixos desaparece. O impacto é menor em livrarias com gestões mais inteligentes, como a Cultura e a Livraria da Vila (e até algumas livrarias de bairro), onde o simples comércio evoluiu para uma experiência rica de compras, com lojas transformadas em espaços de eventos e vendedores transformados em consultores editoriais.

No caso das editoras, a situação é mais grave. A Amazon realmente aperta seus pescoços para que os preços caiam. E essa é uma briga mundial, como pode ser visto em várias batalhas jurídicas entre o varejista e editoras nos EUA e em países da Europa. Porém o mais grave, que atinge o coração das editoras, é a oferta aos autores para que eles editem e publiquem, por sua conta, seus livros. A própria Amazon, a Apple e outros oferecem sistema de “autopublicação” poderosos e fáceis de usar, que tornam a publicação de um livro uma tarefa que dispensa a figura da editora. De quebra, esses players promovem e vendem as obras em suas lojas virtuais, garantindo aos autores royalties incrivelmente mais alto que o oferecido pelas editoras tradicionais.

Não é de hoje que esse tema frequenta “O Macaco Elétrico”. Editoras e livrarias tentam encontrar maneiras de perpetuar seus modelos moribundos, normalmente tentando aprovar leis que contrariam os interesses dos consumidores, e se organizando para enfrentar as exigências dos varejistas mais exigentes. Mas agora a Amazon finalmente chegou para essa queda de braço.

Como pode ser visto, não é uma questão simplória de preço. Trata-se de modernizar o negócio de livros. Não dá para continuar tapando o sol com a peneira.

Em time que está empatando, não se mexe?

Foto: Manuel de Sousa/domínio público

O mercado de livros impressos no Brasil teve um crescimento inexpressivo em 2013, enquanto as receitas com e-books mais que triplicaram no mesmo período. Mesmo assim, as iniciativas digitais de editoras e livrarias continuam extremamente tímidas, para não dizer que há um boicote deliberado para tentar retardar o quanto puderem a migração para os meios digitais.

Os índices acima são da pesquisa Produção e Venda do Setor Editorial, da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), encomendada pela CBL (Câmara Brasileira do Livro) e pelo Snel (Sindicato Nacional de Editores de Livros), divulgada nesta terça (22). Segundo o estudo, o mercado de livros impressos cresceu 7,52% em 2013, com vendas de R$ 5,3 bilhões. Porém, se descontarmos a inflação do período (5,91%), o crescimento real foi de mísero 1,52%. O resultado, que já não é alentador, fica pior se descontarmos as gordas compras do governo, de R$ 1,4 bilhão. Nesse caso, o crescimento foi nulo. Já as receitas com e-books cresceram 225%, saltando para R$ 12,7 milhões.

Não é grande coisa: a participação dos livros digitais é de apenas 2,3% do negócio de livros brasileiro. Como comparação, o e-commerce já passa de 10% do faturado pelo comércio como um todo. E, comparando conteúdo com conteúdo, o mercado de música digital já supera metade do total faturado pela indústria fonográfica.

Essa participação tão pequena dos livros digitais se deve mais ao desinteresse das editoras que dos autores. Foram produzidos 30.683 títulos digitais em 2013, sendo 26.054 e-books e 4.629 app-books, livros digitais que são, na verdade, aplicativos e oferecem recursos mais avançados (exemplos: Frankie for Kids e The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore). Muitos desses títulos vêm de publicadores independentes ou pelo menos não ligados às grades casas editoriais. Isso ficou ainda mais fácil com os sistemas de autopublicação, como o iBooks Author e o Kindle Direct Publishing –que permitem que qualquer pessoa edite e publique sozinho seus e-books.

A reação das editoras vem sendo a pior possível. Ao invés de fomentar o mercado de livro digital, cujo custo de produção é muito mais baixo que o equivalente impresso, tentar cercear o seu crescimento, com iniciativas como amarrar em contrato que os e-books não sejam vendidos por menos que 70% dos equivalentes em papel. Dessa forma, desestimulam a migração para o novo formato. Impossível não comparar com o que ocorreu nos EUA, especialmente graças à Amazon, que vende livros digitais a valores muito mais baixos que os impressos. Dessa iniciativa, vieram dois resultados: as vendas dos títulos explodirem e as receitas dos livros digitais já superaram as dos impressos.

Mas a Amazon é varejo. Só conseguiu isso usando sua massiva força de venda para pressionar as editoras. Aqui no Brasil, entretanto, as livrarias têm um comportamento ainda pior que as editoras, capitaneadas pela ANL (Associação Nacional de Livrarias), que encara o livro digital como uma ameaça ao segmento. Não dá para esquecer a carta aberta que Ednilson Xavier, presidente da entidade, publicou em dezembro de 2012 com quatro propostas para proteger seus afiliados. Além do teto de 30% de desconto para as versões digitais dos livros, ele também propôs que esse desconto seja uniforme para todos os canais de venda, que, caso as editoras ou as distribuidoras vendam diretamente ao consumidor, esse desconto despenque para 5% e –pasmem– que livros sejam lançados na versão digital apenas depois de 120 dias da versão em papel.

Ednilson está, claro, fazendo o seu papel (sem trocadilhos). O livro digital ameaças as livrarias ainda mais que as editoras. Nos EUA, as livrarias digitais já vendem mais livros (incluindo os impressos) que as suas concorrentes “tradicionais”: US$ 7,54 bilhões contra US$ 7,12 bilhões.

Atitudes como as acima só demonstram o desespero de alguém incapaz de se adaptar a uma nova realidade em que pessoas compram e leem cada vez mais livros digitais em seus tablets, smartphones e e-readers, mesmo com preços artificialmente majorados. Para se manterem vivas, editoras e livrarias colocam o interesse do leitor em segundo plano.

Não estou sugerindo que caminhem graciosamente para seu fim sem fazer nada. Estou propondo que façam justamente algo, mas que seja construtivo. E isso significa uma mudança real de paradigmas. Aos que não se modernizarem, ainda lhes restará a venda de livros em papel, que continuarão existindo por muitos anos, principalmente em um país com uma grande deficiência de infraestrutura tecnológica como o nosso.

O que é inaceitável é manter a postura de “tapar o sol com a peneira”, “impedir a chegada do futuro” (que, por sinal, já é presente). Essa tática de não mexer em time que está empatando é coisa de técnico de futebol medíocre. Logo, logo, acabarão tomando uma goleada de 7 a 1.

O que Jeff Bezos quer com The Washington Post

Jeff Bezos, fundador e CEO da Amazon, que acaba de comprar The Washington Post - Foto: Steve Jurvetson/CC

Jeff Bezos, fundador e CEO da Amazon, que acaba de comprar The Washington Post

A semana começou com uma notícia que sacudiu a indústria de mídia. Na segunda, The Washington Post, um dos mais respeitados jornais do mundo, anunciou sua venda (juntamente com toda a unidade de jornais da empresa) para Jeff Bezos, criador e CEO da Amazon. Mas, desde então, apesar de inúmeras reportagens e artigos sobre a transação, ninguém ainda respondeu categoricamente a pergunta que muitos estão fazendo: afinal, o que Jeff Bezos quer com The Washington Post?

O magnata da Internet, que ajudou a cunhar o conceito de e-commerce começando a Amazon em uma garagem em 1994, pagou US$ 250 milhões pelo Post, uma relativa pechincha, cujo valor representa cerca de 1% de sua fortuna pessoal. É importante observar que a aquisição foi feita com seu dinheiro pessoal: não foi a Amazon que fez a compra.

Apesar de Bezos afirmar que não pretende fazer mudanças no jornal, que não ocorrerão demissões e que toda a diretoria editorial será mantida, seus novos funcionários ficaram chocados com a novidade. Até uma carta aberta, assinada pelo colunista Gene Weingarten, foi publicada. O empresário também já deixou claro que não mudará de Seattle, de onde controla a Amazon, para a capital dos EUA.

No meio desse cenário de palpitações, uma coisa se pode afirmar com boa dose de segurança: o que Bezos realmente comprou não foi um jornal, especialmente por ser um jornal que, a despeito de sua qualidade e importância social e histórica, apresenta seus números todos apontando para baixo. O que ele realmente adquiriu foi uma marca robusta e um grupo de pessoas talentosas que sabem como fazer bom jornalismo. E isso não tem nada a ver com o papel que ainda distribui grande parte desse conteúdo.

Apesar de US$ 250 milhões ser muito dinheiro, se tudo der errado, Bezos não ficará pobre. O que quero dizer é que seu investimento pessoal representa um risco baixo para ele. Mas não se deve pensar que esse movimento foi uma excentricidade ou aventura do empresário. Bezos é um reconhecido visionário e um astuto homem de negócios. Não iria simplesmente torrar 1% da sua grana. Ele –claro– sabe de algo que nenhum de nós sabe, nem mesmo a turma do The Washington Post: a resposta à pergunta do primeiro parágrafo.

O conteúdo não é mais o rei

Até há poucos anos, os diretores de redação das diferentes mídias, inclusive da digital, bradavam que “o conteúdo é o rei!” Honestamente quem inventou essa história deve ter sido um colega jornalista. Parecia fazer sentido então, mas, se fosse verdade, a mídia impressa, onde provavelmente mais se produz bom jornalismo, não estaria ladeira abaixo.

É óbvio que conteúdo de qualidade é e sempre será importante. As pessoas sabem disso, e consomem mais conteúdo que nunca. Porém ele sozinho não sustenta mais as empresas. O “modelo de negócios”, termo indissociável quando se discute a crise da mídia, é o que mudou. E quem está ganhando dinheiro hoje com conteúdo (próprio ou dos outros) é quem conseguiu enxergar e surfar nessa mudança. E adivinhem só: são principalmente as empresas de tecnologia, não as de mídia. Apesar de as últimas alimentarem as primeiras com seu conteúdo.

Aí entra Bezos. Como novo dono do The Washington Post, ele poderá aproveitar o excelente conteúdo que sua nova equipe é capaz de produzir de maneiras que os Graham, os donos do Post pelos últimos 80 anos, jamais pensaram (ou ousaram). Apenas para ficar na mais óbvia, não me espantaria se, em breve, proprietários de Kindles, os e-readers e tablets que são a joia da coroa da Amazon, passassem a ter acesso irrestrito aos produtos do Post, enquanto o resto do mundo teria que pagar algo por isso. É um belo apelo de vendas para o Kindle, especialmente para o consumidor americano.

Nesse caso, The Washington Post poderia trocar a tendência dos jornais fadados ao desaparecimento pela tendência das empresas de mídia que são financiadas por negócios muito maiores e mais robustos que precisam de conteúdo, ainda que isso não seja o seu core business.

Nesse caso, quem diria, Bezos poderia salvar o jornalão por não pensar como os jornalistas. Não os da Redação, mas os da administração. Acompanharei detalhadamente o desenrolar dessa compra e torcerei pelo sucesso da operação. Não apenas por isso poder jogar um pouco de luz para uma importante indústria que está se debatendo para sobreviver, mas porque me entristece muito a morte de um jornal.

Quem vem depois?

Por que os próprios publishers não pensaram –eles próprios– em algo assim? Claro que é mais fácil quando se é dono da Amazon e do Kindle, e se compra um dos bastiões do jornalismo mundial como a maioria de nós compra uma televisão.

O fato é que eles poderiam –e ainda podem– aproveitar várias oportunidades que estão quicando na área. Mas me atrevo a dizer que lhes falta ousadia e também humildade.

Muita gente acha que The New York Times será o próximo a trilhar esse caminho do The Washington Post. A turma da capital mesmo escreveu sobre isso.

E no Brasil, alguém vai comprar os jornalões e reinventá-los antes que eles desapareçam? Até 2010, parecia que a crise dessa indústria ainda não tinha chegado aqui com força.  Alguém duvida hoje que essa água já está no pescoço?

A hora e a força das autopublicações

Foto: Maximilian Schönherr

A combinação de sistemas como o iBooks Author e o Kindle Direct Publishing –que permitem que qualquer pessoa edite e publique sozinho seus e-books– com a chegada oficial no Brasil das grandes livrarias virtuais –no dia 6 de dezembro, a Amazon e o Google Play se juntaram ao iTunes e ao Kobo– pode fazer de 2013 um ano marcante para quem quiser lançar suas obras dispensando editoras, os “autopublicadores”. Mas há algumas pedras no caminho.

Até havia bem pouco tempo, publicar um livro era algo que exigia o apadrinhamento de uma editora ou –na imensa maioria dos casos– o pagamento antecipado de uma tiragem mínima, normalmente 500 exemplares. No primeiro caso, a editora cuidava de tudo, mas ficava com a parte do leão, restando ao autor royalties diminutos. No outro, o investimento na composição e impressão da obra não era pequeno para quem estava começando. Além disso, com os livros nas mãos, cabia ao autor a tarefa de vendê-los, o que muitas vezes terminava em um grande encalhe de exemplares –e consequente prejuízo.

Há poucos anos, surgiram no Brasil empresas especializadas em impressão sob demanda: o exemplar do livro só é impresso depois de ser vendido. Dessa forma, elimina-se o problema do encalhe, mas, em contrapartida, a impressão de cada exemplar fica muito mais cara.

Agora, editar e publicar sua obra são quase tão fáceis quanto escrever o seu texto em um processador eletrônico. E os novos sistemas ainda permitem a inclusão de recursos interativos e de multimídia poderosos, fazendo com que as obras compostas pelos próprios autores não fiquem devendo nada às criadas pelas grandes editoras.

Restava ainda solucionar a questão da distribuição, que normalmente restringia as vendas dos autores-empreendedores a poucas dezenas de exemplares. Grandes livrarias não dão destaque a autores desconhecidos –isso quando sequer reservam algum espaço em suas prateleiras a eles. A Amazon e afins resolvem esse problema com sua capacidade virtualmente infinita de comercializar a quantidade de obras que quiser.

E aí o conceito de “cauda longa”, onde qualquer título, por mais específico que seja, encontra o seu público, ganha força. Uma prova disso aconteceu na própria Amazon brasileira nos primeiros dias de sua operação: durante dois dias, o livro mais vendido foi “Organizando a Vida com o Evernote”, do desconhecido Vladimir Campos. Ok, pode-se argumentar com razão que isso resultou de peculiaridades do início da operação. Mas Campos jamais repetiria o sucesso –em dois meses, vendeu quase 1.500 e-books a R$ 16– na abertura de uma nova loja física de uma grande livraria. Possivelmente não venderia nenhum exemplar no mesmo período.

Outro exemplo interessante é “Frankie for Kids”, uma versão (em português e inglês) de Frankenstein encapsulada dentro de um aplicativo com ilustrações e interatividade para crianças. Primeira iniciativa no mercado de livros do casal de jornalistas Fernando Tangi e Samira Almeida, chegou a encabeçar a lista de mais vendidos da categoria no iTunes logo após seu lançamento.

Por tudo isso, há uma grande chance de experimentarmos no Brasil algo que já se nota em alguns países há alguns anos: a força dos autopublicadores. Erika Leonard James, autora da coqueluche do momento, a trilogia “Cinquenta Tons de Cinza”, começou assim. Os três títulos da sequência viraram um sucesso primeiramente como e-books e impressão sob demanda (as versões digitais inclusive garantiam a discrição de suas leitoras na hora da compra e da leitura, importante para muitas delas, pela natureza erótica da obra). Apenas no ano seguinte, uma grande editora comprou os direitos e relançou a obra (já um sucesso), para inundar onipresentemente as vitrines das livrarias físicas.

Turma do contra

A combinação dos sistemas de autoria e as livrarias virtuais democratizam a leitura e facilitam o surgimento de novos autores, que podem lançar obras cobrando menos e ganhando mais, por eliminar custos típicos das obras impressas e das editoras. Isso é uma excelente notícia, especialmente em um país em que as pessoas leem pouco, em parte pelos altos preços dos livros.

Mas nem todo mundo está feliz. Os primeiros a torcer o nariz são as próprias editoras. Há quase um ano, repercuti uma carta aberta do publisher Arnaldo Saraiva, em que ele afirmou categoricamente que as editoras de livros (no caso, didáticos) não têm mais nada a oferecer a seus autores. As reações ao post (e à carta) foram mistas: os leitores concordaram; as editoras estrilaram.

Outros que naturalmente têm a perder são as livrarias. Se os leitores começarem a comprar e-books (ou mesmo livros impressos) das livrarias virtuais, seja pela comodidade, seja pelos preços mais baixos, como fica sua situação?

As editoras brasileiras conseguiram amarrar em contrato que os e-books não sejam vendidos por menos que 70% dos equivalentes em papel, apesar de os custos serem muitíssimo mais baixos nas versões digitais, o que permitiria descontos ainda maiores. Isso já é bastante questionável. Mas o pior mesmo tem sido a reação das livrarias.

No início de dezembro, a ANL (Associação Nacional de Livrarias) divulgou uma carta aberta com quatro propostas para proteger seus afiliados. Além do teto de 30% de desconto para as versões digitais dos livros, Ednilson Xavier, presidente da ANL, que assinou a carta, também quer que esse desconto seja uniforme para todos os canais de venda, duas práticas totalmente contrárias aos interesses do consumidor. Pior que isso: outro ponto propõe que, caso as editoras ou as distribuidoras vendam diretamente ao consumidor, que esse desconto seja de ridículos 5%.

O último ponto é o mais grotesco de todos: a ANL sugere que livros sejam lançados na versão digital apenas depois de 120 dias da versão em papel. Diante de tudo que foi exposto acima, isso é evidentemente uma tentativa de impedir o futuro (na verdade, o presente) para preservar um negócio à custa dos consumidores e dos autores.

Xavier evoca as regras do mercado cinematográfico, em que um filme sai primeiro nos cinemas, para depois seguir a mídias domésticas e só então à TV (fechada e depois aberta). Quanto a esse ponto, vale ressaltar que, na época do surgimento do VHS, quando muitos decretaram a breve morte das salas de cinema, elas eram desconfortáveis, com imagem e som ruins. Diante da ameaça que lhes foi apresentada, os cinemas passaram por uma incrível transformação de infraestrutura e de tecnologia, criando uma nova experiência com a qual nem mesmo os atuais discos blu-ray podem se equiparar. Reinventaram seu negócio e não apenas mantiveram sua relevância, como a ampliaram. E isso foi mais importante que qualquer regulamentação.

Propostas como essa me fazem lembrar da famigerada “Lei da Informática”, que vigorou no Brasil de 1984 a 1992. Em resumo, ela impediu a entrada de fabricantes internacionais de computadores no país, em nome de fortalecer a então recém-criada indústria brasileira de informática. Na prática, o que se viu foi o consumidor brasileiro sendo obrigado a comprar equipamentos nacionais obsoletos e a preços abusivos (ou recorrendo ao contrabando), sem que a indústria se preparasse para a competição internacional. De fato, após o fim da reserva de mercado, o que se viu foram os fabricantes brasileiros abandonando seus projetos para se transformarem em revendas ou montadores dos mesmos produtos estrangeiros até então proibidos.

“Libertas Quae Sera Tamen”

Sou um liberal e, dessa forma, condeno intromissões governamentais que, por mais que ajudem um segmento econômico, sejam contrárias ao interesse da maioria. Isso é típico de países que querem até impedir, por força de lei, que sua língua sofra influência de outros idiomas, um disparate em tempos de Internet onipresente.

É importante ressaltar que os pequenos livreiros já sofrem uma concorrência brutal, quase desleal: a das redes de livrarias, que compram das editoras grandes lotes de obras a preços mais baixos. Para esse pessoal, o drama já está posto há muitos anos, e novas tecnologias e players pouco impactarão em suas vendas já espremidas.

As grandes livrarias –essas sim– podem sofrer mais, pois seus clientes são justamente os consumidores de tablets e de e-readers, e já estão comprando obras digitais. Porém, assim como eles forçaram as pequenas livrarias a se posicionar para sobreviver, devem agora transformar seu negócio para que ele não pereça. Fica o exemplo da Cultura, que já é a representante nacional do Kobo e transformou suas lojas em espaços de convivência cultural.

A única coisa que não se pode admitir ou tolerar são controles contra a liberdade, que impeçam a queda no preço das obras e o surgimento de novas E. L. James. Eles atrapalham que a sociedade evolua e progrida.

Jobs agora estende sua mão para a imprensa… no iPad

Steve Jobs, CEO da Apple, sugeriu na D8 que a o iPad pode ajudar a mídia a sair de sua crise - Foto: reprodução

Steve Jobs, CEO da Apple, sugeriu na D8 que a o iPad pode ajudar a mídia a sair de sua crise

Há pouco mais de um ano, Jeff Bezos, CEO da Amazon, sugeriu publicamente que seu e-reader, o Kindle, poderia ajudar a imprensa (especialmente a impressa) a sair de sua enorme crise. Afinal, ele permite que as grandes casas editoriais entreguem seus produtos a custos muito mais baixos, dispensando a impressão e a distribuição. Tanto que convenceu grandes títulos americanos a abraçar sua causa, incluindo o The New York Times, a Time e a Newsweek. Claro, nem todo mundo concordou: Rupert Murdoch, dono da News Corporation, torceu o nariz e chegou a dizer que “não vamos dar o nosso conteúdo à boa gente que produz o Kindle”.

Ontem foi a vez de Steve Jobs engrossar o coro de Bezos. Ou quase: na verdade, ele sugeriu que isso pode acontecer no seu tablet, o iPad. Em entrevista realizada no evento D: All Things Digital, promovido anualmente pelo The Wall Street Journal, o CEO da Apple repetiu a “receita de bolo”: “estou tentando fazer esses colegas adotarem posturas mais agressivas que o que eles cobram tradicionalmente pelo impresso, porque eles não têm os custos de impressão, eles não têm os custos de entrega, cobrando um preço razoável e ganhando no volume.”

Sou muito mais as visões de Bezos e de Jobs que a de Murdoch. Não apenas pela proposta de novo modelo de negócios que os dois primeiros sugerem, combinado à comodidade de os equipamentos fazerem o download automático dos periódicos para seus assinantes. Mas o que mais me atrai –e aí especialmente no iPad– são as possibilidades de se criar um veículo de comunicação realmente inovador, seguindo o que discuti no post anterior.

Algo que se aproximou bastante da minha visão foi um conceito apresentado pela revista Sports Illustrated em dezembro no ano passado, reproduzida no vídeo abaixo:

Claro que nem tudo que vemos em um conceito se materializa, pelo menos não logo de cara. Mas o protótipo apresentado pela revista no mês passado, já era bastante interessante, inclusive trazendo alguns recursos de compartilhamento não visto no primeiro conceito apresentado:

Em um momento em que o “jornal do futuro” não consegue ir além de infames golpes publicitários dos jornalões, chega a ser revigorante ver iniciativas com as da Sports Illustrated. O papel ainda vai nos acompanhar por muito tempo, mas o uso criativo de equipamentos como o iPad abre a possibilidade de criar uma categoria completamente nova –e muito mais rica– de veículo de comunicação, algo pelo qual as pessoas voltariam a achar razoável pagar. O que não dá é continuar querendo ganhar isso no grito.

WSJ abraça o micropagamento enquanto rejeita Kindle

Murdoch não está surdo aos movimentos do mercado: adotará o micropagamento e deve lançar seu próprio e-reader em breve

Murdoch não está surdo aos movimentos do mercado: adotará o micropagamento e deve lançar seu próprio e-reader em breve

Enquanto a indústria de mídia discute e discute qual será o seu modelo de negócios do futuro, especialmente para o impresso, o The Wall Street Journal anunciou que está criando um sistema de micropagamento que permitirá que pessoas que não assinem o seu serviço acessem notícias e artigos individualmente, pagando por cada um. Além disso, lançará um serviço Premium que oferecerá o serviço noticioso da Dow Jones. Em tempo: o WSJ é dono de um dos poucos bem-sucedidos casos de assinatura paga na Web, com mais de um milhão de usuários desembolsando US$ 100 por ano pelo acesso.

Rupert Murdoch, dono da News Corporation, que, por sua vez, é dona do WSJ, anunciou que o modelo deve ser ampliado para todos os jornais do grupo. Para o mogul das comunicações, a era do conteúdo online grátis logo acabará. Murdoch lidera a resistência dos descontentes com o jeito que a notícia virou commodity com a Internet e condena serviços como o Google News, que cria publicações agregando conteúdos de diferentes fontes.

A metralhadora giratória não poupa nem o Kindle, que acaba de ter uma terceira versão –a DX– anunciada e vem ganhando manchetes como uma possível maneira de se distribuir os “jornais do futuro”. Tanto que o The New York Times –concorrente da News Corp– é uma das estrelas de seu portfólio. “Não vamos dar o nosso conteúdo à boa gente que produz o Kindle”, disparou Murdoch recentemente.

Isso não quer dizer que ele seja contra os e-readers, como o produto da Amazon. Na verdade, o próprio empresário já ventilou que seu conglomerado de mídia estaria desenvolvendo o seu próprio equipamento. Claro, ele não quer dividir a sua margem com outros: o mercado especula que a Amazon fique com 70% do valor das assinaturas de periódicos baixados e lidos pelo Kindle. Nesse sentido, a resistência de Murdoch é compreensível. Mas a News Corp terá força para, por si só, criar uma alternativa viável de produto? De todo jeito, teria que se associar a algum concorrente da Amazon, pois, por mais que confie na qualidade e relevância de seu conteúdo, ele não é suficiente para abocanhar uma fatia significativa desse mercado. A própria Sony, que já está na estrada com o Reader, pena para fazer frente ao Kindle.

Claro, são apostas.Murdoch está fazendo as deles corajosamente, mas muita água ainda vai passar por baixo dessa ponte. Ele está certo em se posicionar logo e, se as suas idéias se transformarem no modelo vencedor, a News Corp aumentará a sua influência de uma maneira decisiva.

Para Bezos, Kindle pode salvar jornais em um mundo com menos papel

Bezos sugere que os jornais "migrem" para seu Kindle a preços mais baixos

Bezos sugere que os jornais "migrem" para seu Kindle a preços mais baixos

Jeff Bezos é um sujeito singular. Ele ficou milionário apostando no comércio eletrônico já em 1994, quando o termo ainda nem havia sido criado. Graças a sua visão de futuro, transformou a Amazon não apenas na maior livraria do mundo (sua origem), mas também na maior vendedora de música e na maior loja de departamentos. Agora ele quer repetir a dose com seu e-reader, o Kindle. Ele espera se firmar como líder no nascente (e cada vez mais explosivo) mercado de livros digitais. Mas também começa a oferecer uma possível saída para a combalida indústria de mídia.

No dia 6 de maio, deu uma nova cartada nessa direção, anunciando o Kindle DX, terceira versão do produto, que vem a público apenas dois meses depois do lançamento do Kindle 2, que continuará sendo vendido. A novidade traz recursos muito interessantes, como a possibilidade de conexão por redes WiFi (e não mais apenas por conexões de celular 3G), o dobro de memória (4 GB, suficientes para guardar, de uma só vez, uma média de 3.500 livros) e a possibilidade de se ler os textos na vertical ou na horizontal, simplesmente rotacionando o equipamento, como acontece com o iPhone. Mas o que chama mais a atenção é a sua tela de 9,7 polegadas, o dobro da do Kindle 2 e quase o tamanho de uma folha de revista. Ok, custa mais caro: US$ 489 contra US$ 359 do Kindle 2.

De todos os recursos do Kindle DX, o que mais chama a atenção é o tamanho da sua tela

De todos os recursos do Kindle DX, o que mais chama a atenção é o tamanho da sua tela

A telona é muito bem-vinda para ler as versões de revistas e jornais para o e-reader. Já estão disponíveis assim as edições diárias de 37 jornais e 28 revistas de seis países, incluindo o The New York Times, a Time e a Newsweek. Mas o que mais chama a atenção é que essas assinaturas digitais podem custar até metade da assinatura do mesmo conteúdo impresso!

Isso faz todo o sentido, já que se elimina o gigantesco custo da impressão. Neste blog mesmo, já havia comentado o interessante exercício feito por Nicholas Carlson, do The Business Insider, que calculou (grosseiramente) que um Kindle 2 custaria metade que o necessário em papel para se imprimir um ano do The New York Times para cada um de seus assinantes. O mesmo jornal anunciou que, até junho, oferecerá assinaturas a preços reduzidos para as cidades onde não há distribuição da versão impressa.

Não sei se Bezos conseguirá repetir seu sucesso com o Kindle, apesar de o produto estar sendo bem recebido. A concorrência está se mexendo (o principal rival é o Reader, da Sony), mas há rumores de que a Apple está preparando o seu produto e que a News Corp, de Rupert Murdoch também entraria nesse mercado. Mas a idéia de os jornais terem, como alternativa, “migrarem” para essa nova plataforma é sem dúvida nenhuma interessante.