Violência contra a mulher começa em casa, passa pelo MasterChef e desagua nas redes sociais

Foto: CMYKane / Creative Commons

A edição mirim do MasterChef começou no dia 20 com uma de suas participantes, Valentina, de 12 anos, sendo alvo de comentários sexistas nas redes sociais. Cinco dias depois, o tema da redação do ENEM abordou justamente a violência contra as mulheres, e novamente o assunto inundou a Internet. Sempre acredito que o debate enriquece ideias, mas o que eu vi nesses dois casos é assustador.

No caso de Valentina, apenas uma criança, os impropérios dirigidos gratuitamente a ela já seriam imperdoáveis por si só. Mas o que se viu foi as redes sociais funcionando como caixas de ressonância para as barbaridades. Pessoas curtindo tudo aquilo e outras engrossando o caldo do horror, sem a menor preocupação de serem identificados a partir de seus perfis.

Os assediadores acham que tudo isso é mais que normal: seria perfeitamente aceitável pela nossa sociedade. E essa sensação tem origem no fato de que, no Brasil, a coisa é mais ou menos assim mesmo. A culpa recai sobre a vítima, como se ela fosse culpada pelo problema.

Fico imaginando o que Valentina teria feito para ser alvo de tudo aquilo e simplesmente não consigo encontrar nada. A começar porque nada justificaria o fato.

Meu sentimento foi reforçado pelo ENEM. Muita gente, candidatos ou não, se sentiu ofendida com a proposta da redação, como se estivessem sendo forçados a assumir uma posição “feminista” (a menos, é claro, que quisessem levar um zero) e isso fosse uma ofensa a sua honra, talvez sua masculinidade. Era como se escrever um texto combatendo à violência contra as mulheres, o que pode ser facilmente extrapolado para violência contra seres humanos, fosse algo penoso, que lhe fosse suprimir algum direito bizarro.

As aspas em “feminista”, no parágrafo anterior, foram propositais. Fica muito claro que a maioria das pessoas não entendem o que o termo significa (vou dar uma ajudinha com duas boas definições, do site Significados e da Wikipedia). De volta às redes sociais, assisti perplexo a pessoas com seu discurso de ódio contra a prova, baseado nas premissas acima. Também vi gente dizendo que a prova era uma doutrina “da esquerda” e que até se tratava de uma ameaça à família. Mas a minha esperança de uma sociedade melhor foi realmente abalada quando eu vi mulheres dizendo isso tudo.

Mulheres criticavam publicamente uma crítica à violência contra a mulher.

 

Impunidade e idiotismo

As redes sociais despertam características curiosas em alguns indivíduos.

A primeira delas é uma falsa sensação de impunidade, quase como se não pudéssemos ser alcançados em nossa “vida online”. Nela, fazemos coisas que jamais faríamos “presencialmente”, e essa característica se manifesta com bastante força nas redes sociais. Sempre gosto de usar, como exemplo, um álbum de fotos da família. Quem iria a uma praça e ficaria mostrando as fotos de seus filhos a desconhecidos? Então por que fazem isso nas redes sociais?

Isso explica parcialmente porque as pessoas publicaram tudo o que foi dito acima sobre o ENEM e sobre Valentina com os seus perfis reais. Estão lá para serem inequivocamente identificados, mesmo quando o que diziam poderia ser considerado crime em diferentes artigos do Código Penal. É verdade que muitos trogloditas diriam tudo aquilo também presencialmente, mas outros o fizeram apenas por se sentirem protegidos por esse véu inexistente da “vida online”.

Acontece que não existe essa história de “vida online” e “vida presencial”. As duas são apenas diferentes expressões de uma única realidade. Somos seres indivisíveis e, como tal, respondemos pelo que fizermos em qualquer lugar, mesmo no ciberespaço.

A segunda característica, prima da anterior, é uma espécie de ciberidiotismo. Assim como estar online causa a algumas pessoas a sensação de estar acima da lei, também destrava em um grupo o pior de sua personalidade, derrubando qualquer limite moral que tenham para fazer valer suas premissas.

Entendo que muita gente não goste do atual Governo Federal, e não estou aqui julgando ninguém por isso. Mas de repente notei que esse posicionamento político legítimo se misturou ao tema da redação. Afinal, por esse raciocínio, se o ENEM é feito pelo Ministério da Educação, logo tudo que ele propõe deve ser ruim, uma “doutrinação de esquerda”, uma “lavagem cerebral terrível” e, portanto, até mesmo combater a violência contra mulheres na redação deve ser algo condenável.

É triste ver a tecnologia sendo usada em atitudes que pioram a nossa sociedade, a despeito de seu potencial para melhorá-la. Para casos como os descritos acima, vejo o Direito e a Psicologia como as disciplinas do conhecimento humano necessárias para corrigir os excessos e os desvios.

Sobre a prova do ENEM, só posso dizer que ela cumpriu bem o propósito de levantar uma discussão tão importante na sociedade, ainda que o caminho tenha sido mais tortuoso que o que seria necessário. E, para Valentina, espero que o amor e o carinho de familiares e amigos a ajudem a passar por esse assédio da melhor maneira possível.

Depois de mudar o jeito de ver TV, Netflix agora mira o cinema e até o jornalismo

Cena de "Beasts of No Nation", primeiro filme da Netflix para o cinema - Foto: divulgação

Cena de “Beasts of No Nation”, primeiro filme da Netflix para o cinema

Na última sexta, a Netflix estreou “Beasts of No Nation”, seu primeiro longa-metragem para cinema. Dois dias antes, seu CEO, Reed Hastings, e seu diretor de conteúdo, Ted Sarandos, anunciaram a intenção de investir em jornalismo nos próximos anos. Se fosse outra empresa, essas poderiam ser apenas duas decisões isoladas, mas, nesse caso, elas podem representar o início de mudanças maiúsculas no mundo cinematográfico e do noticiário.

O Netflix é uma das empresas mais inovadoras do momento, não apenas pela sua eficiência e pela simplicidade de seu produto, mas porque, graças a elas, conseguiu modificar a maneira como as pessoas veem televisão. Ela não inventou o conceito de vídeo sob demanda, mas o popularizou em uma interface simples e presente em todo tipo de plataforma tecnológica, a um preço justo.

Porém a verdadeira mudança deriva disso tudo: dar ao consumidor a capacidade de escolher o que assistir, na hora que quiser e com o dispositivo que preferir. E esse poder fica ainda mais evidente nas séries, cujos capítulos de uma temporada são oferecidos todos de uma só vez, e não mais um por semana. Dessa forma, se o consumidor quiser, pode assistir a todos na sequência. Pode parecer uma bobagem, mas essa possibilidade coloca em xeque o conceito de grade de programação, algo sobre o qual se monta os modelos de negócios das emissoras de TV abertas e por assinatura

Beasts of No Nation” (sem título em português) estreou em apenas 31 salas independentes nos EUA (nenhuma no Brasil). Isso é insignificante em um país com cerca de 40 mil salas de cinema. Não se trata de um filme ruim: pelo contrário, “Beasts” traz um retrato cru e contundente do flagelo das crianças-soldado na África, elaborado meticulosamente para tentar abocanhar prêmios importantes, inclusive algum Oscar.

Mas então por que tão poucos endereços estão exibindo a produção original da Netflix?

 

Boicote contra a inovação

Acontece que a empresa decidiu lançar o filme em sua plataforma no mesmo dia em que saía no cinema. Normalmente são exigidos pelo menos 90 dias de embargo após a estreia nas salas para que um filme chegue a qualquer outra plataforma ou mídia, temendo a canibalização das bilheterias. A Netflix acha que isso pode ser mudado. Os grandes conglomerados de exibição, como Cinemark e UCI, acham que não. Por isso, boicotaram “Beasts” em massa.

A inovação nem sempre é compreendida. Mas a indústria do cinema deveria, pois já foi ameaçada por inovações antes. A turma na faixa dos 40 anos deve se lembrar do frenesi causado pelo lançamento do VHS. Na época, dizia-se que as fitas acabariam com as salas de cinema. Em um primeiro momento, isso parecia ser verdade, pois muita gente começou a deixar de ir ao cinema para alugar filmes. Mas a culpa não era do VHS, que oferecia uma imagem ruim, exibida em uma TV de tubo pequena em nossas casas. A culpa era do próprio cinema: as salas eram quase sempre reduzidas, abafadas, cheirando a mofo, com projeção e som ruins, poltronas desconfortáveis e uma pipoca horrorosa. Diante dessa oferta, migrar para o VHS parecia uma alternativa vantajosa.

Foi quando as exibidoras deixaram o chororô de lado e investiram na criação de salas incríveis, que proporcionassem uma experiência realmente marcante. Algo que o VHS e seus sucessores DVD e blu-ray jamais poderiam imitar. Assim, cada um encontrou o seu lugar no mercado, e as salas de exibição estão cheias como nunca.

Mas agora podem argumentar que a Netflix está querendo acabar com o embargo, que sempre existiu. Isso é uma visão míope e protecionista, de alguém que quer matar no peito um tsunami que se aproxima.

Sempre se deve dar ao consumidor a escolha. E isso significa, nesse caso, a Netflix oferecer logo os filmes e as salas de cinema continuarem a oferecer uma experiência diferenciada. Uso pesadamente o serviço online, mas também estou sempre no cinema, que adoro. Aliás, adoraria ver “Beasts” na telona, se possível em uma sala IMAX.

Mas quero ter a opção em minhas mãos.

 

Um novo jornalismo

Agora a empresa vem com essa história de produzir conteúdo jornalístico próprio. Quem vai gritar contra?

Ao contrário do cinema, as grandes empresas de jornalismo estão quase todas moribundas. Chegaram a essa situação por culpa exclusiva delas mesmas, que resistiram (e ainda resistem) a mudar seu produto, seu modelo de negócios e o relacionamento com seu público, mesmo com as pessoas migrando para alternativas mais modernas e vantajosas.

Nesse caso, não vejo o Netflix enfrentando resistência, pois os veículos tradicionais não têm fôlego para isso. Contemplarão mais uma nova empresa fazendo bem a função em que antes eram mestres, pelo simples fato de realizar um trabalho sério e adequado a realidade vigente. E, novamente, dando ao consumidor o poder da escolha.

Jeff Bezos, criador e dono da Amazon, comprou The Washington Post há dois anos, e está salvando o jornalão com sua visão pragmática de negócios e com amplos investimentos em tecnologia e jornalismo. O futuro da notícia parece cada vez mais vinculado aos gigantes da tecnologia digital.

Se a Netflix ganhará o Oscar, só o tempo dirá. A premiação nunca foi exclusivamente por critérios artísticos, e os interesses dos exibidores certamente pesam entre os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. A empresa precisará convencer os decanos de Hollywood que não está destruindo o cinema. Ou então trilhar o caminho contrário: cativar irremediavelmente o público com sua nova proposta e esperar que a pressão popular faça o resto.

Uber mostra que políticos são reféns de máfias e ignoram economia compartilhada

Taxistas do Rio protestam contra o Uber - Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil/Creative Commons

Taxistas do Rio protestam contra o Uber

Na última quinta (8), Fernando Haddad, explicou como espera resolver a crise entre os taxistas da cidade e o Uber. Com um discurso pretensamente moderno, o prefeito de São Paulo não apenas piorou o imbróglio, como também, a exemplo de seu colega do Rio, Eduardo Paes, demonstrou que não entende absolutamente nada de economia compartilhada.

Esse novo conceito subverte modelos de negócios consolidados em favor da população, com usos criativos da tecnologia. Com ele, alguém que possua um recurso ocioso -no caso, um carro- pode oferecê-lo parcialmente a quem estiver disposto a pagar por isso. Dessa forma, minimiza-se a necessidade de se comprar novos carros, otimizando o uso dos já existentes. De quebra, os proprietários passam a ter uma renda extra, enquanto os consumidores ganham novas e interessantes ofertas de produtos e serviços.

A suposta “solução” da prefeitura foi a criação de uma nova categoria de táxis, batizado de “táxi preto”, uma referência à cor que os carros deverão ter, a mesma dos veículos do Uber. Também igual ao praticado pela empresa, os motoristas só poderão ser chamados a partir de um aplicativo, a ser fornecido pela prefeitura. Para participar da nova categoria, o motorista deverá ser agraciado com uma das 5.000 licenças que serão sorteadas pela administração municipal e ainda pagar uma taxa que pode chegar a R$ 60.000. Ou seja, contrário a tudo o que a economia compartilhada prevê.

Desde que o Uber chegou a São Paulo, tenho debatido o assunto com motoristas da empresa e com taxistas. Do segundo grupo, tirando os radicais que acham que “Uber bom é Uber morto”, ficou claro que o problema não é o novo serviço roubar passageiros deles. A própria prefeitura admite que há um enorme déficit de táxis na cidade: são 3 para cada 1.000 habitantes (no Rio, essa proporção é de 9 para cada 1.000). Ou seja, em uma cidade com cerca de 35 mil táxis rodando e uma demanda reprimida de pelo menos outros 20 mil, os atuais 1.500 carros do Uber (segundo dados dos motoristas) estariam longe de causar uma ruptura no negócio dos taxistas.

Onde o calo aperta é na desvalorização do alvará, concessão da prefeitura que permite a prestação de serviço de táxi na cidade. Apesar de concedido gratuitamente, São Paulo não emite novas licenças desde 1996. Com isso, criou-se um verdadeiro mercado negro de alvarás, que são comercializados para quem quiser ingressar na profissão, o que é contra a lei. Frotas de táxis em São Paulo detém uma enorme quantidade dessas concessões. E, pelo que ouvi de muitos taxistas, vereadores são donos de algumas das maiores frotas da cidade.

 

Máfia incomodada

Comprar um alvará é algo simples: basta perguntar a qualquer taxista, e ele provavelmente conhecerá o caminho até alguém que queira vender um. Antes da chegada do Uber, a transação facilmente superava R$ 100 mil. Para operar no ponto de Congonhas, o mais valioso da cidade, o alvará passava de R$ 150 mil! Com a chegada do novo serviço, o valor desse mercado negro despencou, sendo possível adquirir um alvará hoje por menos de R$ 50 mil.

Não é necessário ser gênio para se perceber que muita gente tomou um prejuízo milionário com a chegada do Uber à cidade. Afinal, para que pagar uma fortuna por um alvará, se ele não é mais necessário para se prestar o serviço? Mesmo com os motoristas do Uber não tendo acesso aos benefícios dos taxistas, como desconto para comprar veículos e outras isenções de impostos, fazer parte da economia compartilhada pareceu ser muito mais vantajoso, rentável, simples e justo.

Ironicamente, o prefeito disse que um dos benefícios da nova lei é combater a “máfia dos alvarás”. Como? Criando um novo, que já nasce pago e com um valor obsceno, tanto quanto o cobrado pelo mercado negro. Confesso que fiquei confuso sobre como esse combate se dará.

Haddad perdeu a chance de demonstrar uma visão moderna sobre o transporte individual em que o passageiro não é o próprio condutor. O Uber é amplamente aprovado pelos seus usuários, que teriam enviado cerca de 900 mil e-mails ao gabinete do prefeito pedindo que vetasse a lei aprovada na Câmara dos Vereadores, proibindo o serviço. Mas ele preferiu ficar refém de uma categoria que, apesar de, sim, possuir bons profissionais, prefere se acomodar em uma situação em que os próprios motoristas são explorados por uma máfia inescrupulosa, com a benção do poder público.

Resta a esperança de que a Justiça casse essa lei estapafúrdia e traga um pouco de modernidade aos setores mais rançosos de nossa economia. A Justiça do Rio já concedeu liminar tornando inócua a lei sancionada por Paes. Já é um primeiro passo.

A tecnologia pode PIORAR a educação?

Ábaco - Foto: reprodução

Há alguns dias, fui bombardeado com discussões e reportagens sobre um estudo recente da OCDE sobre competências digitais dos alunos. O que mais me chamou a atenção foram afirmações de que o uso intensivo de tecnologia em sala de aula estaria piorando a qualidade do ensino, até mesmo o desenvolvimento das próprias habilidades digitais.

Aquilo me pareceu, no mínimo, contraditório, além de bater de frente com as minhas crenças sobre os benefícios de um bom uso de recursos digitais na escola. Mas se “contra fatos, não há argumentos”, fui atrás dos fatos e conversei com especialistas para entender essa aparente incoerência.

Felizmente o que o relatório “Estudantes, Computadores e Aprendizado: Fazendo a Conexão” propunha não era bem aquilo. Na verdade, o estudo, feito a partir do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) de 2012, sugere que o simples investimento em tecnologia nas escolas não resulta necessariamente em um melhor desempenho das habilidades digitais dos estudantes.

Mas então de onde veio essa história de que a tecnologia piora a educação?

Acontece que nos países que tiveram os melhores resultados no levantamento, Coreia do Sul, China (especificamente Xangai e Hong Kong) e Japão, o uso da informática em sala de aula fica consideravelmente abaixo da média dos países avaliados. Por outro lado, os resultados de países como Suécia, Dinamarca, Noruega e Polônia, que usam pesadamente a tecnologia na escola, pioraram ou ficaram estagnados.

Evidentemente a OCDE não está sugerindo que as escolas abandonem o uso de computadores. A mensagem passada é que, se os professores não estiverem preparados para usar a tecnologia criativamente, uma escola cheia desses recursos não passará de marketing para atrair pais de alunos.

Agora as coisas começam a fazer sentido.

 

Uma escola para pensar

Na apresentação do relatório, Andreas Schleicher, diretor de Educação e Habilidades da OCDE, explicou que “é necessário que os sistemas escolares encontrem formas mais eficazes de integrar a tecnologia ao ensino e à aprendizagem para proporcionar aos professores recursos de instrução que apoiem as pedagogias do século 21”.

Trocando em miúdos, computadores, tablets, smartphones, lousas digitais e afins são poderosas ferramentas para ajudar o aluno a aprender a pensar. Não são imprescindíveis para isso, e o estudo acima deixa isso claro, mas, se bem utilizados, podem fazer uma enorme diferença.

O grande desafio é implantar com sucesso recursos que ampliam os horizontes dos alunos e lhes dão ampla liberdade de pensamento e ação em um modelo escolar originado na Revolução Industrial, em que o que se prezava era a obediência às regras sem questionamentos e a habilidade de reproduzir tarefas com precisão. Por mais que, nos últimos anos, vejamos alguns movimentos interessantes de subverter essa lógica perversa na educação, quase sempre essas iniciativas são isoladas e restritas às escolas das classes mais altas.

Para dificultar ainda mais, os professores, que deveriam ser os condutores dessas mudanças, não foram preparados para a tarefa. Sua formação até aborda teoricamente modelos pedagógicos inovadores, porém as próprias faculdades não seguem tais propostas. Mais que isso: usos criativos da tecnologia não são discutidos.

O resultado disso são professores que são usuários de computadores, tablets e smartphones no seu cotidiano, mas que não conseguem transpor essa experiência pessoal para seus planos de aula, algo compreensível na introdução de qualquer tecnologia inovadora em um processo consolidado. Seria como pedir que Sócrates passasse a usar com seus discípulos uma lousa. Justo ele que questionava a utilidade da escrita.

A introdução bem-sucedida dos recursos digitais na escola passa, portanto, por uma restruturação do próprio modelo educacional, repensando os papeis dos professores e dos estudantes no processo. A tecnologia se manifesta de diferentes maneiras no dia a dia dos alunos, permitindo que eles absorvam um enorme volume de informação, muitas vezes de maneira anárquica, sem orientação para discernir o bom do ruim com uma análise crítica. Por conta disso, estudantes de todas as idades chegam às salas de aula carregados com uma geleia indefinida de informação.

Eu, como professor, me deparo com isso o tempo todo. Preciso ter humildade para aceitar que, muitas vezes, o aluno terá mais informação que eu sobre determinado assunto. Justamente aí reside o novo papel do professor: deixa de ser o detentor do conhecimento, até então repassado a alunos que o absorviam passivamente, e passa a ser o orientador dessa turma, alguém que, com sua experiência, é capaz de organizar e transformar todo aquela informação difusa em conhecimento.

Alunos e professores ganham, portanto, funções muito mais nobres. E o uso correto da tecnologia pode maximizar esses resultados, por ampliar o pensamento livre e facilitar o acesso à informação.

Não é uma tarefa fácil! Se os professores não se apropriarem adequadamente das novas tecnologias, elas não cumprirão seu objetivo pedagógico e ainda podem se tornar fatores de dispersão, como indicou o relatório da OCDE. Aqueles que, por outro lado, conseguirem realizar a tarefa terão o prazer de conhecer a verdadeira nova educação, com alunos engajados e felizes, construindo, junto com o professor, seu conhecimento.

Estamos vendo o fim da TV, pelo menos como a conhecemos

Wagner Moura como Pablo Escobar, na série "Narcos", lançada recentemente pelo Netflix - Foto: divulgação

Wagner Moura como Pablo Escobar, na série “Narcos”, lançada recentemente pelo Netflix

No dia 24 de novembro, “A Estrada do Futuro”, primeiro livro de Bill Gates, completará 20 anos. Como todo exercício de futurologia, apenas algumas de suas previsões se concretizaram, e nem sempre como se esperava. Mas uma delas está colocando em xeque algo que faz parte de nossas vidas há mais de meio século: a televisão.

Gates antecipou em seu livro o surgimento do vídeo sob demanda, termo técnico que define serviços online em que o consumidor assiste à programação que quiser, na hora que quiser, cujos dois maiores expoentes são o YouTube e o Netflix. Mas talvez ele não tenha imaginado que a popularização desse recurso ameaçaria o modelo de negócio das emissoras e redefiniriam o uso do aparelho de TV como se vê hoje.

O fato é que a tecnologia mudou a maneira de nos relacionarmos com qualquer tipo de conteúdo, e as empresas de comunicação demoraram muito a perceber a chegada desse tsunami. Agora que a onda as atingiu, estão se debatendo em uma tentativa atabalhoada de se salvar.

A primeira e decisiva mudança é que, com um smartphone, o cidadão comum abandonou a sua condição milenar de consumidor de mídia para se tornar produtor. Não chega a surpreender, portanto, que a câmera seja um dos recursos mais usados dos celulares: fotografamos compulsivamente tudo (inclusive nós mesmos, o fenômeno das selfies) e criamos nossos próprios programas, que compartilhamos não apenas com nossos amigos, mas com o mundo todo. E, quando alguém deixa de assistir à Globo para ver nossas produções, passamos a ser concorrentes da Vênus Platinada.

Aliado a isso, o vídeo sob demanda acabou de vez com o monopólio das emissoras sobre o que vemos. Por que eu tenho que assistir a uma novela só porque “é o que está passando agora”? Eu quero ver um filme nesse momento! Ou uma série ou desenho animado. Ah, eu também quero ver a novela, mas na hora que eu quiser! E tem mais: quero ver três capítulos na sequência.

Trocando em miúdos, a grade de programação, algo essencial no modelo de negócios das emissoras, está com os dias contados. Graças a ela, os executivos criam os espaços para a publicidade e controlam a liberação dos conteúdos seguindo seus interesses. Por isso, o novo consumidor ameaça não apenas a TV aberta, mas também a TV por assinatura.

Os números são impactantes e ilustrativos. Estudo recente do ConsumerLab, divisão da Ericsson que estuda o comportamento dos consumidores, feito com 22.500 pessoas de 20 países, indica que 36% do tempo diário em que os brasileiros assistem a vídeos é destinado a conteúdo sob demanda, 1% a mais que média mundial. E 66% dos brasileiros entrevistados afirmaram que não encontram nada interessante para assistir na TV tradicional, o que justifica o crescimento dos serviços de vídeo sob demanda.

 

O consumidor paga pelo conteúdo que lhe interessa

Engana-se quem acha que esse fenômeno é motivado pelo desejo de se consumir conteúdo de graça. Essa premissa, usada por executivos das mais diferentes “mídias tradicionais” (música, imprensa, TV, entre outros) é absolutamente falsa! O consumidor paga, sim, por conteúdo de toda natureza, desde que esse produto lhe traga um benefício claro. De fato, a pesquisa do ConsumerLab mostra também que 22% dos consumidores que nunca pagaram por uma TV por assinatura já estão pagando por serviço de vídeo sob demanda. E aí o Netflix mostra o caminho a ser seguido.

Apesar de a empresa não divulgar a quantidade de assinantes no Brasil (são 65 milhões no mundo), o mercado estima que esse número deve variar entre 2,5 milhões e 4 milhões. Colocando isso em dinheiros, a receita da empresa para esse ano por aqui deve variar entre R$ 500 milhões e R$ 1 bilhão. Na hipótese mais conservadora, o Netflix faturaria mais que a Band e a Rede TV!, quarta e quinta maiores emissoras nacionais; na mais arrojada, empataria com o SBT. Os números foram debatidos no congresso da ABTA (Associação Brasileira de Televisão por Assinatura), no início de agosto, cujos membros afirmam que o Netflix é um concorrente desleal.

Não precisa ser gênio para juntar os números do Netflix e de outros serviços com conclusões de estudos como o do ConsumerLab e entender o que está acontecendo. A tecnologia deu ao consumidor o poder de escolha, abrindo-lhe os olhos para perceber que não é obrigado a consumir uma programação de qualidade rasteira em um formato que não lhe convém.

O aparelho de TV cada vez mais é um poderoso computador conectado à Internet (e os fabricantes estão investindo nisso), diminuindo a importância de sua histórica função de receptor de imagens empurradas goela abaixo do telespectador. Permite que a escolha do usuário agora vá muito além dos canais acionados pelo controle remoto.

Além disso, a TV não é mais o único equipamento para se assistir a vídeos: ela ocupa apenas uma fatia do tempo do consumidor para esse fim. Uma fatia cada vez menor, diga-se de passagem, que vem sendo substituída pelo crescente uso dos dispositivos móveis, especialmente os smartphones. No caso de conteúdo sob demanda, 61% do total já é consumido nas pequenas telas, segundo o ConsumerLab.

 

Observem as crianças

É muito interessante observar as crianças, pois elas entendem e se apropriam de novas tecnologias com grande facilidade e velocidade. Por isso, são excelentes indicadores de como será o futuro breve. E, no assunto que aqui discutimos, elas têm um comportamento muito interessante: quando querem assistir sozinhas a um vídeo, fazem isso no seu smartphone, mesmo que estejam em casa. Por outro lado, quando se trata de uma experiência com outras pessoas, como a família, o melhor lugar para o YouTube e o Netflix é a smart TV da sala. Claro, faz todo o sentido!

Pago mensalmente um adicional de R$ 30 para ter os canais da HBO no meu plano de TV por assinatura. Quis usar o aplicativo de vídeo sob demanda HBO GO, incessante promovido em seus comerciais, mas não consegui, pois a minha operadora de TV a cabo não permite. Devo dizer que fiquei com uma vontade enorme de pagar os R$ 30 mensais diretamente à HBO, e não à operadora, que deixou de ser uma facilitadora para se tornar uma dificultadora.

Essa empresa e seus pares precisam urgentemente repensar seus modelos, assim como as emissoras precisam melhorar sua programação. Ou, em muito pouco tempo, as crianças de hoje enterrarão a TV como a conhecemos, transformando sua tela em uma ferramenta de liberdade e qualidade em que nenhuma dessas empresas fará parte.